Os resultados graves são raros, mas os casos sérios de infeção – ou os casos de COVID longa – podem afetar a gravidez e colocar mães e bebés em risco.
Lisa O’Brien adoeceu assim que chegou a casa, no estado do Utah, depois de passar férias no Havai em março de 2020. Lisa foi um dos primeiros casos de COVID-19 no seu estado. Embora não tenha sido hospitalizada, Lisa nunca recuperou completamente. O seu coração bate com uma irregularidade frenética, ela sente-se exausta e já teve coágulos sanguíneos. E apesar de Lisa ter tido sempre um ciclo menstrual semelhante a um relógio, só teve cinco menstruações em quase dois anos. Lisa O’Brien tinha 42 anos quando adoeceu, ou seja, foi uma mudança surpreendente:, porque é demasiado jovem para estar na menopausa.
Em junho de 2020, depois de ter criado um grupo privado no Facebook – o Utah COVID-19 Long Haulers – Lisa percebeu que muitas outras pessoas também apresentavam sintomas persistentes, um fenómeno agora conhecido por COVID longa. Isto inclui alterações dramáticas nos ciclos menstruais. Por todo o país, milhares de mulheres disseram que o vírus tinha afetado a sua menstruação – e este era apenas um sinal precoce de que a COVID longa pode afetar a saúde reprodutiva das mulheres.
Uma avaliação feita com 2.000 casais mostrou que a vacinação contra a COVID-19 não diminui a fertilidade, ao contrário das alegações feitas nas redes sociais. No entanto, os novos estudos têm revelado que as infeções por SARS-CoV-2 podem colocar em risco a vida de mães e bebés ainda por nascer. Uma investigação financiada pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA descobriu que as grávidas tinham 40% mais propensão para ter complicações graves do que as grávidas não infetadas. Outro estudo revela que o vírus pode dizimar a placenta, cortando o abastecimento de oxigénio do feto e provocando natimortos.
Os investigadores ainda estão a tentar decifrar os detalhes de como é que este vírus perturba os ciclos menstruais, porque é que coloca mais mulheres grávidas nas unidades de cuidados intensivos ou ligadas a ventiladores do que qualquer outro grupo de adultos e a tentar descobrir uma forma de intervir para evitar natimortos.
“A ciência está a evoluir, este vírus é verdadeiramente único e não creio que tenhamos dados suficientes para dizer exatamente como que é isto afeta os problemas reprodutivos”, diz Lucinda Bateman, especialista em medicina interna e diretora médica do Centro Bateman Horne no Utah. “Isto é algo que vai demorar algum tempo.”
À procura de respostas pós-virais
Lisa O’Brien diz que os médicos descartaram inicialmente os seus sintomas pós-infeção, uma reação que tem sido comum.
“A COVID longa tem afetado predominantemente as mulheres e elas não têm sido ouvidas”, diz Lucinda Bateman. “Foi-lhes dito que era tudo uma resposta emocional à pandemia.”
O objetivo de compreender as síndromes pós-virais, principalmente nas mulheres, impulsionou a carreira de Lucinda Bateman. E também era uma questão pessoal. Quando Lucinda estava a terminar a faculdade de medicina, a sua irmã desenvolveu encefalomielite miálgica, anteriormente conhecida por síndrome de fadiga crónica. Lucinda Bateman tratou pacientes com condições pouco compreendidas como fibromialgia e ME/CFS durante décadas, que podem ser doenças autoimunes ou neuroimunes e são mais comuns nas mulheres, e abriu o Centro Bateman Horne em 2015 para poder fazer trabalho de investigação.
Até agora, Lucinda encontrou o que chama “um paralelo distinto” entre a COVID longa e as pessoas com ME/CFS em termos de inflamação e possíveis características autoimunes. Talvez o sistema imunitário feminino esteja profundamente interligado com as hormonas, particularmente o estrogénio. Portanto, compreender o vírus significa entender a forma como o sistema imunitário responde ao patógeno.
O vírus pode desencadear uma rede incrivelmente complexa de alterações hormonais, dificultando a identificação da origem ou a causa das mudanças, diz Lucinda Bateman. E isto é particularmente difícil nas mulheres, que têm hormonas flutuantes, não só durante um mês, mas também ao longo das suas vidas: incluindo na adolescência, gravidez e pós-gravidez, durante tratamentos de infertilidade e mudanças na meia-idade.
Alguns dos primeiros relatórios mais abrangentes sobre a COVID longa surgiram em maio e dezembro de 2020, graças ao esforço Patient-Led Research Collaborative, um grupo composto por investigadores que também têm a doença. Numa sondagem feita online globalmente, os investigadores documentaram pelo menos 205 sintomas que podem persistir em qualquer um dos 10 sistemas orgânicos – incluindo os sistemas reprodutivo e endócrino.
Cerca de 75% dos 3.762 entrevistados eram mulheres; e 25% tiveram períodos anormalmente irregulares de menstruação, um rácio corroborado por outras investigações. Cerca de 5% experimentaram menopausa precoce (durante ou antes dos 40 anos); outras 5% tiveram períodos de rutura, embora já tivessem passado pela menopausa. Os sintomas por vezes persistem durante seis meses ou mais após a infeção.
As mulheres parecem ser mais afetadas do que os homens, diz Jeanette Brown, médica intensivista e diretora da Clínica de COVID-19 Longa da Universidade do Utah. A maioria dos pacientes tem entre 20 e 50 anos e eram saudáveis antes da infeção, mas apresentam sintomas que aparecem, desaparecem, aumentam ou diminuem.
Determinar as implicações de uma infeção na fertilidade e na gravidez é particularmente complicado porque as consequências para a saúde demoram a surgir, diz David A. Schwartz, patologista e epidemiologista placentário sediado em Atlanta.
“Determinar se uma nova infeção provoca complicações na gravidez devido à duração da gestação é algo que pode demorar muitos meses”, diz David Schwartz. “Mas temos observado cada vez mais dados que nos dizem que, se uma mulher for infetada com o vírus durante a gravidez, corre o risco de um resultado adverso.”
Os riscos de infeção na gravidez
Em 2020, no primeiro verão e outono a conviver com a pandemia, os obstetras começaram a registar um aumento nos partos prematuros. “E depois começámos a ver mortes maternas”, recorda David Schwartz.
Isto não foi completamente inesperado; tanto a gripe, como a síndrome respiratória aguda (SARS), síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS) e outras infeções virais levaram a resultados terríveis para mães e respetivos bebés, incluindo casos de aborto espontâneo, crescimento fetal restrito e natimortos.
Só agora é que os médicos estão a obter uma visão mais detalhada de como as infeções por COVID-19 durante a gravidez podem afetar mãe e filho.
Um novo estudo retrospetivo liderado por Torri D. Metz, especialista em medicina fetal materna da Universidade de Utah, quantifica o que aconteceu às mulheres grávidas entre março e dezembro de 2020 – antes da vacinação estar disponível. Torri Metz colaborou com colegas de 16 outros hospitais para examinar os registos médicos de 14.000 mulheres que deram à luz durante este período. Entre este grupo de mulheres, 2.352 testaram positivo para a COVID-19; as restantes não estavam infetadas.
Os resultados são preocupantes. No geral, as mulheres infetadas têm um risco acrescido de 40% de complicações e um risco maior de necessitar de cuidados intensivos, respiração assistida por ventilador ou até morrer quando comparadas com as mulheres grávidas não infetadas. A maioria das mulheres que tiveram problemas sérios foram as mais gravemente atingidas pelo vírus. “Para as que tiveram um caso moderado ou mais grave da doença [COVID-19], o perigo duplicou – um aumento de 100%”, diz Torri Metz. Este grupo também teve mais cesarianas.
Algumas complicações na gravidez, como pressão alta, pré-eclâmpsia (uma condição que envolve hipertensão e problemas com a função renal ou hepática) e hemorragia pós-parto com risco de vida ou infeção, progrediram para doenças muito mais graves nas mulheres com COVID-19. Estas gestações também resultaram em mais nascimentos prematuros e bebés internados nos cuidados intensivos neonatais. Os médicos dizem que isto pode ter consequências ao longo da vida; os bebés prematuros enfrentam um risco significativo de QI reduzido e transtorno de défice de atenção, e podem ter dificuldade nas interações sociais e no controlo emocional.
“A COVID é muito mais perigosa numa mulher grávida devido a um sistema imunitário suprimido e à capacidade pulmonar reduzida”, diz Paula Brady, endocrinologista reprodutiva da Universidade de Colúmbia. Isto explica, pelo menos em parte, porque é que um número considerável de mulheres grávidas que adoecem com o vírus acabam por ser hospitalizadas.
O ataque viral feito à placenta também pode explicar algumas destas complicações, diz Torri Metz. “Já se sabe há algum tempo que a pressão alta e a pré-eclâmpsia na gravidez estão intimamente ligadas à função placentária.” A COVID-19 pode resultar em áreas com um fluxo sanguíneo deficiente através da placenta, e a pressão arterial da mãe pode subir para níveis perigosos, privando o feto de nutrientes e oxigénio.
O próximo passo para Torri Metz e o seu consórcio é acompanhar estas pacientes e os seus filhos nos próximos quatro anos para documentar se enfrentam problemas de saúde persistentes.
Efeitos da COVID nos bebés em desenvolvimento
Contrair COVID-19 também parece colocar em risco um bebé em desenvolvimento. Algumas das primeiras pistas que indicavam as razões pelas quais isto estava a acontecer surgiram no Condado de Cork, na Irlanda, onde houve um conjunto de infortúnios. Ao longo de três meses no início de 2021, seis mulheres grávidas que contraíram o vírus deram à luz bebés natimortos e outra paciente abortou durante o segundo trimestre da gestação. Os cientistas descobriram que as suas placentas estavam infetadas e danificadas pelo vírus.
Isto levou David Schwartz a lançar uma investigação internacional para descobrir porquê. David, juntamente com colegas, examinou 68 placentas de 64 fetos natimortos e quatro recém-nascidos que morreram pouco depois de nascerem em 12 países. Em cada um destes casos, as mães não estavam vacinadas e contraíram a COVID-19 durante a gravidez.
A placenta é o órgão do bebé, que se desenvolve durante a gravidez e fixa à parede uterina. O oxigénio e os nutrientes da corrente sanguínea da mãe viajam pela placenta e chegam ao feto através do cordão umbilical. O fluxo sanguíneo materno também é a via mais provável para a infeção placentária.
Os patologistas de cada país avaliaram primeiro o tamanho, a forma e a saúde geral das placentas infetadas antes de recolherem pequenas amostras para examinar ao microscópio. Todas eram anormais. Uma placenta saudável, diz David Schwartz, é avermelhada e facilmente compressível, um pouco como esfregão da loiça. O coronavírus altera radicalmente o tecido, torna-o firme, elástico e denso. Ao microscópio, os investigadores observaram redemoinhos escuros de tecido necrótico.
Todas as placentas tinham excesso de fibrina – uma malha fibrosa que ajuda a coagular o sangue. Isto parece ter obstruído o fluxo sanguíneo para o órgão, sufocando o abastecimento de oxigénio e matando o tecido placentário.
“O que descobrimos foi uma surpresa enorme”, diz David Schwartz. Em média, 77.7% da placenta estava destruída, tornando-a incapaz de responder às necessidades básicas de sobrevivência de um feto. “Era altamente consistente de caso para caso, muito para além de uma coincidência. É um nível inédito de destruição placentária para uma infeção viral”, acrescenta David.
“Do ponto de vista clínico, vai ser importante rastrear quanto tempo é que este processo leva desde o momento em que a mãe é infetada para que este terrível processo ocorra e leve à morte fetal.” Este conhecimento pode revelar uma janela de intervenção, salvando bebés que já atingiram uma idade viável no útero.
Em novembro de 2021, os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA publicaram um estudo nacional que mostrava definitivamente que uma infeção por COVID-19 durante a gravidez aumentava o risco de natimortos, e este risco aumentou com o aparecimento da variante Delta. Os CDC esperam ter dados sobre a variante Ómicron em breve.
“A boa notícia é a de que [os danos placentários] provavelmente são uma ocorrência rara”, diz David Schwartz. “A maioria das mulheres que tem COVID-19 durante a gravidez não vai ter problemas, e a maioria dos seus bebés também não.”
Contudo, não existe consenso nos relatórios sobre o aborto espontâneo. Alguns estudos encontraram uma maior incidência; mas outros não. Contudo, mesmo que o número total de abortos não tenha aumentado, um estudo revela que nos casos de COVID-19 com uma elevada carga viral e fatores de risco para a gravidez, havia maior risco de aborto. Porém, o impacto real vai ser difícil de avaliar, diz Paula Brady, porque os abortos não são geralmente reportados e algumas infeções por COVID-19 são assintomáticas.
FONTE: NATIONAL GEOGRAPHIC